Discurso de Allan Kardec sobre o Espiritismo, seus objetivos, suas práticas e a sua filosofia


Abaixo temos um discurso de Allan Kardec pronunciado nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e de Bordeaux, e publicado no livro Viagem Espírita em 1862. Recebi via e-mail de uma amiga e decidi, então, compartilhar com aquele leitor que está sempre manifestando interesse sobre o Espiritismo. É um discurso longo e com linguagem culta. Leia com calma e comente o que achou, pode ser? Creio que irá apreciar muito da mesma forma como o fiz!
Senhores e prezados irmãos espíritas,
Livro "Viagem Espírita"
Livro do qual foi extraído o discurso.
Não sois escolares em Espiritismo. Hoje colocarei, pois, de lado, questões práticas sobre as quais, devo reconhecer, estais suficientemente esclarecidos, para enfocar o problema sob uma perspectiva mais larga e, acima de tudo, em suas consequências. Este lado do assunto é grave, o mais grave incontestavelmente, pois que revela o objetivo para o qual tende a doutrina espírita e os meios para atingi-lo. Serei um pouco longo, talvez, pois o assunto é vasto, e, todavia, restaria ainda muito a dizer para completá-lo. Assim, solicitarei vossa indulgência considerando que, podendo permanecer um tempo muito restrito entre vós, sou forçado a dizer, de uma só vez, o que em outras circunstâncias poderia ser dividido em muitas partes.
Antes de abordar o ângulo principal do assunto, creio dever examiná-lo de um ponto de vista que me é, de certa forma, pessoal. Se se tratasse tão somente de uma questão individual, seguramente outra seria a minha atitude. Entretanto ela se prende a vários assuntos de caráter geral e disso pode resultar um esclarecimento de utilidade para toda gente. Esse foi o motivo que me levou a optar por tal iniciativa, aproveitando, assim, a ocasião para explicar a causa de certos antagonismos com que deparamos, não sem algum espanto, em nosso caminho.
No estado atual das coisas aqui na Terra, qual é o homem que não tem inimigos? Para não tê-los fora preciso não habitar aqui, pois esta é uma consequência da inferioridade relativa de nosso globo e de sua destinação como mundo de expiação. Bastaria, para não nos enquadrarmos na situação, praticar o bem? Oh, Não! O Cristo aí está para prová-lo. Se, pois, o Cristo, a bondade por excelência, serviu de alvo a tudo quanto a maldade pôde imaginar, como nos espantarmos com o fato de o mesmo suceder àqueles que valem cem vezes menos?
O homem que pratica o bem – isto dito em tese geral – deve, pois, preparar-se para se ferir na ingratidão, para ter contra ele aqueles que, não o praticando, são ciumentos da estima concedida aos que o praticam. Os primeiros, não se sentindo dotados de força para se elevarem, procuram rebaixar os outros ao seu nível, obstinam-se em anular, pela maledicência ou a calúnia, aqueles que os ofuscam. Ouve-se constantemente dizer que a ingratidão com que somos pagos endurece o nosso coração e nos torna egoístas. Falar assim é provar que se tem o coração fácil de ser endurecido, uma vez que esse temor não poderia deter o homem verdadeiramente bom. O reconhecimento já é uma remuneração pelo bem que se faz; praticá-lo tendo em vista esta remuneração, é fazê-lo por interesse. Por outro lado, quem sabe se aquele que beneficiamos, e do qual nada esperamos, não será estimulado a mais elevados sentimentos por um reto proceder? Este pode ser, talvez, um meio de levá-lo a refletir, de suavizar sua alma, de salvá-lo! Esta esperança constitui uma nobre ambição. Se nos inferiorizarmos, não realizaremos o que nos compete realizar.
Não podemos, entretanto, supor que um benefício, aparentemente estéril na Terra, seja para sempre improdutivo. É, muitas vezes, um grão semeado e que não germina senão na vida futura daquele que o recebeu. Muitas vezes temos observado certos Espíritos, ingratos como homens, tomados de emoção na espiritualidade, pelo bem que lhes foi feito. E essa lembrança, neles despertando pensamentos benéficos, facilita-lhes enveredarem para o caminho do bem e do arrependimento, contribuindo para abreviar seus sofrimentos. Só o Espiritismo poderia revelar este resultado da benevolência, só a ele está dado, pelas comunicações recebidas do além-túmulo, revelar o lado caridoso desta máxima: Um benefício nunca está perdido, substituindo o sentido egoísta que se lhe atribui. Mas, retornemos ao que nos concerne.
Pondo qualquer questão pessoal de lado, tenho adversários naturais nos inimigos do Espiritismo. Não creiais que me lamente! Longe disto! Quanto maior é a animosidade deles, melhor comprova a importância que a doutrina espírita assume aos seus olhos. Se se tratasse de algo sem consequências, uma dessas utopias que já nascem inviáveis, não lhe prestariam atenção. Não tendes visto escritos vasados em um tom de hostilidade que não se encontra nos meus, – quanto à ideologia, – e nos quais as expressões não são mais parcimoniosas do que o atrevimento dos pensamentos? Contra eles, todavia, não dizem uma única palavra! O mesmo se daria se as doutrinas que luto por difundir permanecessem circunscritas às páginas de um livro. Entretanto, – o que pode parecer mais espantoso, – é que tenho adversários mesmo entre os adeptos do Espiritismo: Ora, nesta área é que uma explicação se torna necessária.
Entre os que adotam as ideias espíritas há como bem sabeis três categorias bem distintas: 1. Os que creem pura e simplesmente nos fenômenos das manifestações, mas que deles não deduzem qualquer consequência moral;
2. Os que percebem o alcance moral, mas o aplicam aos outros e não a si mesmos;
3. Os que aceitam pessoalmente todas as consequências da doutrina e que praticam ou se esforçam por praticar sua moral.
Estes, vós bem o sabeis; são os VERDADEIROS ESPÍRITAS, os ESPÍRITAS CRISTÃOS. Esta distinção é importante, pois bem explica as anomalias aparentes. Sem isso seria difícil compreendermos as atitudes de determinadas pessoas. Ora, o que preceitua essa moral? Amai-vos uns aos outros; perdoai os vossos inimigos; retribuí o mal com o bem; não tenhais ira, nem rancor, nem animosidade, nem inveja, nem ciúme; sede severos para convosco mesmos e indulgentes para com os outros. Tais devem ser os sentimentos do verdadeiro espírita, daquele que se atém ao fundo e não à forma, do que coloca o espírito acima da matéria. Este pode ter inimigos, mas não é inimigo de ninguém, pois não deseja o mal a quem quer que seja e, com maiores razões, não procura fazer o mal a ninguém.
Este como vede senhores, é um princípio geral do qual toda a gente pode tirar um benefício. Se, pois, tenho inimigos, eles não podem ser contados entre os Espíritas desta categoria, pois, admitindo que tivessem motivos legítimos de queixa contra mim, o que me esforço por evitar, esse não seria um motivo para me odiarem e, com melhores razões se nunca lhes fiz qualquer mal. O Espiritismo tem por divisa: Fora da caridade não há salvação, o que equivale dizer: Fora da caridade não pode existir verdadeiros espíritas. Solicito-vos inscrever, daqui para frente, esta divisa em vossas bandeiras, pois ela resume ao mesmo tempo o objetivo do Espiritismo e o dever que ele impõe.
Estando, pois, admitido que não se possa ser um bom espírita com sentimentos de ódio no coração, eu me alegro de não ter amigos senão entre estes últimos, pois se eu cometer faltas eles saberão desculpá-las. Veremos, em seguida, a que imensas e férteis consequências conduz este princípio.
Vejamos então as causas que excitaram certas animosidades.
Desde que surgiram as primeiras manifestações dos Espíritos, muitas pessoas viram nisso um meio de especulação, uma nova mina a ser explorada. Se essa ideia seguisse o seu curso teríeis visto pulular por toda a parte médiuns e pseudo médiuns, oferecendo consultas a um dado preço por sessão. Os jornais estariam cobertos por seus anúncios e reclames. Os médiuns teriam se transformado em ledores da sorte e o Espiritismo se enquadraria na mesma linha da adivinhação, da cartomancia, da necromancia, etc. Nesse conflito, como poderia o público discernir a verdade da mentira? Pôr o Espiritismo a salvo, em meio a tal confusão não seria coisa fácil. Tornou-se imperioso impedir que fosse levado por essa via funesta. Era preciso cortar pela raiz um mal que o teria atrasado por mais de um século. Foi o que me esforcei por fazer, demonstrando desde o princípio a face grave e sublime dessa nova ciência, fazendo-a sair do caminho puramente experimental para fazê-la penetrar no da filosofia e da moral, mostrando, enfim, que haveria profanação em explorar a alma dos mortos, enquanto cercamos seus despojos de respeito. Desse modo, assinalando os inevitáveis abusos que resultariam de semelhante estado de coisas, eu contribui, e disso me glorifico, para descreditar a exploração do Espiritismo e, por isso mesmo, levar o público a considerá-lo como uma coisa séria e santa.
Creio ter prestado algum serviço à causa; mas se tivesse feito apenas isso já me felicitaria. Graças a Deus meus esforços foram coroados de êxito, não apenas na França, mas também no estrangeiro, e posso dizer que os médiuns profissionais são hoje raras exceções na Europa. Onde quer que minhas obras penetraram e servem de guia, o Espiritismo é visto sob seu verdadeiro ponto de vista, isto é, sob o ponto de vista exclusivamente moral. Por toda a parte os médiuns, devotados e desinteressados, compreendendo a santidade de sua missão, veem-se cercados da consideração que lhes é devida, qualquer que seja sua posição social. E essa consideração cresce na razão mesma da inferioridade da posição realçada pelo desinteresse.
Não pretendo absolutamente dizer que entre os médiuns profissionais não existem muitos que sejam honestos e dignos de consideração. Mas a experiência provou, a mim e a muitos outros, que o interesse é um poderoso estimulante à fraude, pois tem em mira o lucro; e se os Espíritos não colaboram, o que frequentemente ocorre, pois não estão por conta de nossos caprichos, a astúcia, fecunda em expedientes, encontra facilmente meio de supri-los. Para um que agisse lealmente haveria cem que abusariam e que prejudicariam a consideração do Espiritismo. Por outro lado os nossos adversários não descuidaram de explorar, em proveito de suas críticas, as fraudes que puderam testemunhar, disso concluindo que tudo no Espiritismo é falsidade e que urge, portanto, oporem-se a esse charlatanismo de um novo gênero. Em vão objeta-se que a doutrina não é responsável por tais abusos. Conheceis o provérbio: “Quando se deseja matar seu cão, diz-se que ele está raivoso”.
Que resposta mais peremptória se poderia dar à acusação de charlatanismo do que poder dizer: Quem vos convidou a vir? Quanto pagastes para entrar?. Aquele que paga quer ser servido; exige uma compensação pelo seu dinheiro; se não lhe é dado o que espera, tem o direito de reclamar. Ora, para evitar essa reclamação, cuida-se de servi-lo a qualquer preço. Eis o abuso, mas esse abuso que ameaça se tornar uma regra, ao invés de uma exceção, é preciso deter. Agora que uma opinião se formou a este respeito, o perigo não é de se temer senão para as pessoas inexperientes. Aqueles, pois, que se queixarem de ter sido enganados, ou de não haver obtido as respostas que desejariam, podemos dizer: “Se tivésseis estudado o Espiritismo saberíeis em que condições ele pode ser experimentado com frutos; saberíeis quais são os legítimos motivos de confiança e de desconfiança, o que, em suma, se pode dele esperar; e não teríeis pedido o que ele não pode dar; não teríeis ido consultar um médium como a um cartomante, para solicitar aos Espíritos revelações, conselhos sobre heranças, descobertas de tesouros e cem outras coisas semelhantes que não são da alçada do Espiritismo. Se fostes induzido em erro, deveis apenas culpar-vos a vós mesmos”.
É evidente que não se pode considerar uma exploração a cotização que se paga a uma sociedade para que enfrente as despesas da reunião. A mais vulgar equidade diz que não se pode impor esse gasto àquele que é convidado, se ele não é bastante rico, nem bastante livre com relação ao seu tempo para fazê-lo. A especulação consiste em se fazer uma indústria da coisa, a convocar o primeiro que chega, curioso ou indiferente, para ter seu dinheiro. Uma sociedade que assim agisse seria tão repreensível, mais repreensível ainda do que o indivíduo, e não mereceria nenhuma confiança. Que uma sociedade arque com todas as suas necessidades; que ela proveja a todas as suas despesas e não as deixe ao encargo de um só, isto é muito justo, e não há aí nem exploração, nem especulação. Todavia, já não seria o mesmo se o primeiro que se chegasse pudesse adquirir o direito de entrada, pagando-o, pois isto seria desnaturar o objetivo essencialmente moral e instrutivo das reuniões deste gênero, para delas fazer uma espécie de espetáculo de curiosidades. Quanto aos médiuns, eles se multiplicam de tal forma, que os médiuns de profissão seriam hoje completamente supérfluos.
Tais são, Senhores, as ideias que me esforcei por fazer prevalecer e confesso-me feliz por ter obtido êxito muito mais facilmente do que esperava. Mas, compreendei, aqueles que frustrei em suas esperanças não são meus amigos. Eis-nos, pois, em presença de um grupo que não me pode ver com bons olhos, o que, convenhamos, pouco me inquieta. Se nunca a exploração do Espiritismo tentou se introduzir em vossa cidade, eu vos convido a renegar essa nova indústria, a fim de não comprometerdes a vós mesmos com essa solidariedade e para que as censuras que se levantarem não venham a cair sobre a doutrina pura.
Ao lado da especulação material, há uma à qual poderíamos chamar especulação moral, isto é, a satisfação do orgulho, do amor próprio; aqueles que, sem interesse pecuniário, acreditaram ser possível fazer do Espiritismo um pedestal honorífico para se colocarem em evidência. Também não os favoreci, e meus escritos, assim como meus conselhos, contrapuseram-se a mais de uma premeditação, mostrando que as qualidades do verdadeiro espírita são a abnegação e a humildade, conforme a máxima do Cristo: “Aquele que se eleva será abaixado”. É a segunda categoria que não me quer mais bem, e a que se poderia chamar a das ambições frustradas e dos amores-próprios feridos.
Em seguida vêm as pessoas que não me perdoam por ter sido bem sucedido; para as quais o sucesso de minhas obras é uma causa de desgosto, que perdem o sono quando assistem aos testemunhos de simpatia que, espontaneamente, são-me dispensados. É o clã dos ciumentos, que não é mais benevolente, e que é reforçada pelas pessoas que, por temperamento, não podem ver um homem erguer um pouco a cabeça sem tentar um movimento para fazê-lo submergir.
Uma camarilha das mais irascíveis, acreditai, se encontra entre os médiuns, não pelos médiuns interesseiros, mas pelos que são muito desinteressados, materialmente falando; refiro-me aos médiuns obsedados, ou melhor, fascinados. Algumas observações a este respeito não serão sem utilidade.
Por orgulho, estão de tal forma persuadidos de que tudo o que recebem é sublime e só pode vir de Espíritos Superiores, que se irritam com a menor observação crítica, a ponto de se alterar com seus amigos quando estes têm a inabilidade de não admirar o que é absurdo. Nisto reside a prova da má influência que os domina, pois, supondo-se que, por falta de capacidade de julgamento ou de conhecimento não fossem capazes de enxergar claro, este não constituiria um motivo para se porem de prevenção contra os que não concordam com sua opinião; mais isso não agradaria os Espíritos obsessores que, para melhor manter o médium sob sua dependência, lhe inspiram o afastamento, a aversão mesma por quem quer que possa lhes abrir os olhos.
Há, em seguida, aqueles cuja susceptibilidade é levada ao excesso; que se melindram com a mínima coisa, com o lugar que lhes é dado numa reunião e não os coloca em bastante evidência, com a ordem estabelecida para a leitura de suas comunicações, ou com a recusa da leitura daquelas cujo tema não parece oportuno para uma assembleia; pelo fato de não serem solicitados, com bastante insistência, a dar o seu concurso; outros acham ruim porque a ordem dos trabalhos não é invertida para favorecer suas conveniências; outros gostariam de se colocar como médiuns titulares de um grupo ou de uma sociedade, ali fazer chover ou fazer sol, e que seus Espíritos diretores fossem tomados por árbitros absolutos de todas as questões, etc. etc. Esses motivos são tão pueris e tão mesquinhos, que não se ousa confessá-los. Mas nem por isso deixam de constituir uma fonte de surda animosidade que, cedo ou tarde, se trai, ou pelas malquerenças, ou pelo afastamento. Sem ter razões ponderáveis a oferecer, muitos põem de lado os escrúpulos e apresentam pretextos ou alegações imaginárias. O fato de, absolutamente, não me conformar a essas pretensões surge como um erro, ou melhor ainda, um crime aos olhos de algumas pessoas que, naturalmente, me deram as costas, gesto esse ao qual, mais uma vez reagi, a seu ver, erroneamente, não lhes dando maior importância. Imperdoável! Concebei esta palavra nos lábios de pessoas que se dizem espíritas? Essa palavra deveria ser riscada do vocabulário do Espiritismo.
Esse desagrado, a maior parte dos diretores dos grupos ou das sociedades, como eu, tem experimentado, e eu os convido a fazer como eu, isto é, a não dar importância a médiuns que antes constituem um entrave que um recurso; em sua presença está-se sempre pouco à vontade, com temor de os ferir com ações por vezes as mais insignificantes.
Este inconveniente foi, dantes, mais relevante do que agora. Quando os médiuns eram mais raros do que hoje, tinha-se de se contentar com aqueles de que se dispunha. Hoje, entretanto, que eles se multiplicam diante de nossos olhos, o inconveniente diminui em razão mesmo da escolha e à medida que se compenetra melhor dos verdadeiros princípios da doutrina.
Pondo-se de lado o grau da faculdade, as qualidades de um bom médium são a modéstia, a simplicidade e o devotamento; ele deve oferecer seu concurso tendo em vista ser útil e não para satisfazer a sua vaidade; não deve jamais ater-se às comunicações que recebe pois, de outra forma, poderia fazer crer que nelas põe algo de seu, algo que tem interesse em defender; deve aceitar a crítica, mesmo solicitá-la, e se submeter às advertências da maioria sem pensamento oculto; se o que ele escreve é falso, mau, detestável, é preciso que se lhe diga sem receio de feri-lo, e mesmo na certeza de que tal não ocorrerá. Eis os médiuns verdadeiramente úteis numa reunião e com os quais nunca teremos motivos de descontentamentos, pois bem compreendem a doutrina. São esses também que recebem as melhores comunicações, uma vez que não se deixam dominar por Espíritos orgulhosos. Os Espíritos mentirosos os receiam, pois se reconhecem impotentes para deles abusar.
Em seguida vem a categoria das pessoas que jamais estão contentes; umas acham que vou muito rápido, outras com muita lentidão; é verdadeiramente a fábula do Moleiro, seu filho e o asno. Os primeiros reprovam-me por haver formulado princípios prematuros, de me colocar como chefe de uma escola filosófica. Mas acontece que, pondo-se a ideia espírita à parte, não poderia eu acaso arrogar-me, como tantos outros, a autoria de um sistema filosófico, fosse este o mais absurdo? Se os meus princípios são falsos, por que não apresentam outros que os substituam, fazendo-os prevalecer? Ao que parece, entretanto, de modo geral eles não são julgados irracionais, já que encontram aderentes em tão grande número. Mas, não será exatamente isso que excita o mau humor de certas pessoas? Se esses princípios não encontrassem partidários, se fossem ridículos a partir do primeiro enunciado, seguramente deles não se falaria.
Os segundos, que pretendem que não vou bastante rapidamente, desejariam me empurrar, com boa intenção, quero crer, pois é sempre melhor pressupor o melhor que o pior, num caminho em que não quero me arriscar. Sem, pois, me deixar influenciar seja pelas ideias de uns, seja pelas de outros, sigo a rota que eu mesmo tracei: tenho um objetivo, vejo-o, sei como e quando o atingirei e não me inquietam os clamores dos que passam por mim.
Crede, Senhores, as pedras não faltam em meu caminho. Passo por cima delas, mesmo das mais altas e pesadas. Se se conhecesse a verdadeira causa de certas antipatias e de certos afastamentos, muitas surpresas nos aguardariam. É preciso acrescentar as pessoas que são postas, relativamente a mim, em posições falsas, ridículas e comprometedoras e que procuram se justificar, em última instância, recorrendo a pequenas calúnias; os que esperavam atrair-me a eles pela adulação, crendo poder levar-me a servir aos seus desígnios e que reconheceram a inutilidade de suas manobras para atrair minha atenção; aqueles que não elogiei nem incensei e que isso esperavam de mim; aqueles, enfim, que não me perdoam por ter adivinhado suas intenções e que são como a serpente sobre a qual se pisa. Se todas essas pessoas decidissem se colocar, por um instante sequer, em uma posição extraterrena e ver as coisas um pouco mais do alto, compreenderiam bem a puerilidade de quanto as preocupa e não se espantariam com a pouca importância que a tudo isso dão os verdadeiros espíritas. É que o Espiritismo abre horizontes tão vastos, que a vida corporal, curta e efêmera, se apaga com todas as suas vaidades e suas pequenas intrigas, ante o infinito da vida espiritual.
Não devo, entretanto, omitir uma censura que me foi endereçada: a de nada fazer para trazer de novo a mim as pessoas que se afastam. Isso é verdadeiro e a reprovação fundamentada; eu a mereço, pois jamais dei um único passo nesse sentido e aqui estão os motivos de minha indiferença.
Aqueles que vêm a mim, fazem-no porque isto lhes convém; é menos por minha pessoa do que pela simpatia que lhes desperta os princípios que professo. Os que se afastam fazem-no porque não lhes convenho ou porque nossa maneira de ver as coisas reciprocamente não concorda. Por que, então, iria eu contrariá-los, impondo-me a eles? Parece-me mais conveniente deixá-los em paz. Ademais, honestamente, falta-me tempo para isso. Sabe-se que minhas ocupações não me deixam um instante para o repouso, e para um que parte, há mil que chegam. Julgo um dever dedicar-me, acima de tudo, a estes e é isso que faço. É orgulho? Desprezo por outrem? Oh, seguramente, não! Eu não desprezo ninguém; lamento os que agem mal, rogo a Deus e aos Bons Espíritos que façam nascer neles melhores sentimentos, eis tudo. Se eles retornam, são sempre bem-vindos, mas correr atrás deles, jamais o faço, em razão do tempo que de mim reclamam as pessoas de boa vontade; em segundo lugar, porque não ligo a certas pessoas a importância que elas dão si mesmas. Para mim, um homem é um homem, isto apenas! Meço seu valor por seus atos, por seus sentimentos, nunca por sua posição social. Pertença ele às mais altas camadas da sociedade, se age mal, se é egoísta e negligente de sua dignidade é, a meus olhos, inferior ao trabalhador que procede corretamente, e eu aperto mais cordialmente a mão de um homem humilde, cujo coração estou a ouvir, do que a de um potentado cujo peito emudeceu. A primeira me aquece, a segunda me enregela.
Personagens da mais alta posição honram-me com sua visita, porém nunca, por causa deles, um proletário ficou na antecâmara. Muitas vezes, em meu salão, o príncipe se assenta ao lado do operário. Se se sentir humilhado, eu direi que ele não é digno de ser espírita. Mas, sinto-me feliz em dizer, eu os vi, muitas vezes, apertarem-se as mãos, fraternalmente, e, então, um pensamento me ocorria: “Espiritismo, eis um dos teus milagres; este é o prenúncio de muitos outros prodígios!”
Dependeria de mim abrir as portas do grande mundo; jamais fui nelas bater; isso me tomaria um tempo que creio poder empregar mais utilmente. Eu coloco em primeira instância as consolações que é preciso dar aos que sofrem; levantar a coragem dos abatidos, arrancar um homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez no limiar do crime; não vale mais isto do que os lambris dourados? Tenho milhares de cartas que para mim mais valem do que todas as honrarias da Terra e que vejo como meus verdadeiros títulos de nobreza. Não vos espanteis se deixo ir aqueles que me dão as costas.
Tenho adversários, eu o sei; mas o número deles não é tão grande quanto se poderia crer segundo a enumeração que fiz; eles se encontram nas categorias que citei, mas são apenas individualidades, e o número é pouca coisa comparado aos que desejam testemunhar-me simpatia. Aliás, eles jamais conseguiram perturbar minha tranquilidade; jamais suas maquinações nem suas diatribes me emocionaram; e devo acrescentar que essa profunda indiferença de minha parte, o silêncio que oponho aos seus ataques, não é o que os exaspera menos. Por mais que façam, jamais conseguirão fazer-me sair da moderação e da regra que tenho por conduta. Nunca se poderá dizer que respondi à injúria com injúria. As pessoas que me conhecem na intimidade sabem que jamais me ocupo com eles; que na Sociedade jamais foi dita uma única palavra, foi feita uma única alusão relativamente a qualquer um deles. Mesmo pela Revista jamais respondi às suas agressões, quando dirigidas à minha pessoa, e Deus sabe que elas não têm faltado!
Ademais, de que adianta seu malquerer? De nada! Nem contra a doutrina nem contra mim. A doutrina espírita prova, por sua marcha progressiva, que nada tem a temer. Quanto a mim, não ocupo nenhuma posição, por isso nada existe que me pode ser tirado; não peço nada, nada solicito e, assim, nada me pode ser recusado. Não devo nada a ninguém, desse modo nada há que me possa ser cobrado; não falo mal de ninguém, nem mesmo daqueles que o dizem de mim. Em que poderiam, então, prejudicar-me? É certo que se pode atribuir a mim o que eu não disse e isso já se fez mais de uma vez. Mas, aqueles que me conhecem são capazes de distinguir o que digo daquilo que não sou capaz de dizer e eu agradeço a quantos, em semelhantes circunstâncias, souberam responder por mim. O que afirmo, estou sempre pronto a repetir, na presença de quem quer que seja, e quando afirmo não ter dito ou feito uma coisa, julgo-me no direito de ser acreditado.
Aliás, o que são todas essas coisas em face do objetivo que nós, Espíritas sinceros e devotados, perseguimos juntos? Desse imenso futuro que se desenrola diante dos nossos olhos? Acreditai-me, Senhores, fora preciso ver como um roubo feito à grande obra, os instantes que perdêssemos preocupados com essas mesquinharias. De minha parte agradeço a Deus por me haver, já aqui na Terra, concedido tantas compensações morais ao preço de tribulações tão passageiras, bem como pela alegria de assistir ao triunfo da doutrina espírita.
Peço-vos perdão, Senhores, por vos haver, por tão longo tempo, entretido com assuntos relativos a mim, mas acredito útil estabelecer nitidamente a posição, a fim de que vos seja possível saber em quem vos ater conforme as circunstâncias, e para que estais bem convencidos de que minha linha de conduta está traçada e que dela nada me fará desviar. De resto, creio que destas observações mesmas, fazendo abstração da pessoa, poderão resultar alguns ensinamentos úteis.
(Allan Kardec, reuniões gerais dos espíritas de Lyon e de Bordeaux, e publicado no livro Viagem Espírita em 1862.)
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One Comment

  • 14 de outubro de 2020 às 02:32 | Permalink

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