A Umbanda completou 100 anos em 15 de novembro de 2008, data da sua anunciação pelo Caboclo das Setes Encruzilhadas. Esse fato legitima o verdadeiro nascimento da Umbanda, pelo ineditismo do estabelecimento das normas de seu culto, proclamado só então por essa entidade missionária.
Tal data marca o surgimento estruturado da Umbanda para os homens, já que a Senhora da Luz Velada é muito mais antiga nos planos rarefeitos que o próprio planeta Terra. Embora a participação do médium Zélio de Moraes e o advento do Caboclo das Sete Encruzilhadas não sejam o único fato relacionado à organização terrena da Umbanda, não se pode negar que é o marco referencial mais importante do movimento.
Inegavelmente a Umbanda é uma religião brasileira, e nela encontra-se o amálgama do misticismo do índio, da magia do negro africano e das crenças brancas judaico-cristãs, católicas e espíritas.
Escrever sobre Umbanda sem citarmos Zélio Fernandino de Moraes é praticamente impossível. Ele, assim como Allan Kardec (com relação ao Espiritismo), foram os intermediários escolhidos pelos espíritos para divulgar a religião aos homens.
Zélio Fernandino de Moraes nasceu em 10 de abril de 1891, no distrito de Neves, município de São Gonçalo, Rio de Janeiro. Aos 17 anos, quando se preparava para servir às Formas Armadas, ocorreu um fato curioso: ele começou a falar com um sotaque diferente em tom manso, parecendo um senhor de idade avançada.
Novamente, em fins de 1908, os familiares foram surpreendidos por uma ocorrência que tomou aspectos sobrenaturais: o jovem Zélio, agora acometido por estranha paralisia, a qual os médicos não conseguiam debelar, ergueu-se certo dia do leito e declarou: “Amanhã estarei curado”. No dia seguinte, começou a andar como se nada tivesse acontecido. Nenhum médico soube explicar com ocorrera a recuperação.
Dona Leonor de Moraes resolveu levar o filho a uma curandeira chamada Cândida, figura conhecida em Niterói, e que incorporava o espírito de um preto velho chamado Tio Antônio. A entidade atendeu o rapaz e disse que ele já tinha desenvolvido o fenômeno da mediunidade, e que, portanto, deveria trabalhar na caridade.
Convidados por José de Souza, dirigente da instituição, para participar da sessão, ambos sentaram-se à mesa, e em seguida, contrariando as normas do trabalho, Zélio levantou-se e disse: “Aqui está faltando uma flor”. Dirigiu-se ao jardim, apanhou uma rosa branca e colocou-a no centro da mesa. Iniciou-se então uma estranha confusão no local: ele incorporou uma entidade e, simultaneamente, diversos médiuns também apresentaram incorporações de caboclos e pretos velhos.
Advertido pelo dirigente do trabalho, a entidade incorporada no rapaz perguntou: “Porque repelem a presença desses espíritos, se nem sequer se dignaram a ouvir suas mensagens? Será por suas origens sociais, ou em decorrência de sua cor?”.
Novamente uma força estranha dominou o jovem Zélio, e ele continou a falar, sem saber o que dizia; ouvia apenas sua própria voz a perguntar o motivo que levou os dirigentes dos trabalhos a não aceitarem a comunicação daqueles espíritos e se os consideravam atrasados apenas por suas encarnações anteriores.
[*1] Percebia-se a forma astral de encarnação anterior da entidade, quando fora padre Gabriel Malagrida, santo sacerdote que a Inquisição sacrificou na fogueira, em Lisboa.
O espírito desconhecido respondeu então: “Se julgam atrasados os espíritos de pretos e índios, devo dizer que amanhã – 16 de novembro de 1908 – estarei na casa de meu aparelho para dar início a um culto em que esses irmãos poderão transmitir suas mensagens, e, desse modo, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem saber meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque para mim não haverá caminhos fechados”.
O vidente retrucou com ironia: “Julga o irmão que alguém irá assistir ao seu culto?”. Ao que o espírito respondeu:“Cada colina de Niterói atuará como porta-vez, anunciando o culto que amanhã darei início”.
No dia seguinte, na casa da família Moraes, à rua Florindo Peixoto, número 30, às 20 horas, estavam reunidos os membros da Federação Espírita para comprovar a veracidade do que fora declarado na véspera. Parentes próximos, amigos e vizinhos também se fizeram presentes, e, do lado de fora, uma multidão de desconhecidos.
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[*2] Em fins do século XIX, existiam, no Rio de Janeiro, várias modalidades de culto que denotavam, nitidamente, a origem africana, embora já bem distanciadas da crença trazida pelos escravos. A magia dos velhos africanos, transmitida oralmente, através de gerações, desvirtuara-se mesclada com as feitiçarias provindas de Portugal onde, existiram sempre os feitiços, as rezas e as superstições.
As "macumbas", mistura de catolicismo, feiticismo negro e crenças nativas, multiplicavam-se; tomou vulto a atividade remunerada do feiticeiro; o "trabalho feito" passou a ordem do dia, dando motivo a outro, para lhe destruir os efeitos maléficos; generalizaram-se os "despachos", visando obter favores para uns e prejudicar terceiros; aves e animais eram sacrificados mais diversas finalidades; exigiam-se objetos raros para homenagear entidades ou satisfazer elementos da baixo astral.
Sempre porém, obedecendo aos objetivos primordiais: aumentar a renda do feiticeiro ou "derrubar" os que não se curvassem ante os seus poderes ou pretendessem fazer-lhe concorrência.
Os Mentores do Astral Superior, porém, estavam atentos ao que se passava. Organizava-se um movimento destinado a combater a magia negativa que se propagava assustadoramente; cumpria atingir, de início, as classes humildes, mais sujeitas às influências do clima de superstições que imperava na época.
A casa de trabalhos espirituais então fundada recebera o nome de Nossa Senhora da Piedade, porque, assim como Maria de Nazaré, acolhera os filhos nos braços, também seriam acolhidos ali todos os que necessitassem de ajuda ou conforto.
Ditas as bases do culto, após responder em latim e alemão às perguntas dos sacerdotes presentes, o Caboclo das Sete Encruzilhadas passou à prática dos trabalhos, curando enfermos e fazendo andar os paralíticos.
Naquele mesmo dia, o médium incorporou um preto velho chamado Pai Antônio, que, em decorrência de sua fala mansa, foi tratado por alguns como uma manifestação de loucura. O preto velho, proferindo palavras de muita sabedoria e humildade, além de aparente timidez, recusava-se a sentar à mesa com os presentes, dizendo: “Nego não senta não, meu sinhô; nego fica aqui mesmo. Isso é coisa de sinhô branco, e nego deve arrespeitá”. Após insistência dos presentes, ele pronunciou: “Num carece preocupá não. Nego fica no toco, que é lugá di nego”.
E assim continuou, dizendo outras palavras que expressavam sua humildade. Uma pessoa participante da reunião lhe perguntou se sentia falta de alguma coisa que havia deixado na Terra, ao que ele respondeu: “Minha caximba; nego qué o pito que deixo no toco. Manda mureque busca”. [*3]
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[*3] Provavelmente, deve ter surgido daí o seguinte ponto cantado de pretos velhos: “Seu cachimbo ta no toco, manda moleque buscar / No alto da mata virgem, seu cachimbo ficou lá”, o qual, por essa circunstância, torna emblemática a presença dos pretos velhos na origem da Umbanda”.
A solicitação desse primeiro elemento de trabalho para a nova religião deixou perplexos os presentes. Foi Pai Antônio também a primeira entidade a solicitar uma guia. As mesmas guias são usadas até hoje pelos membros da Tenda, carinhosamente denominadas de “guia de Pai Antônio”.
A partir de então, o Caboclo das Sete Encruzilhadas começou a trabalhar incessantemente para esclarecer, difundir e sedimentar a Umbanda. Foi assim que fundou a corrente astral da Umbanda.
Após algum tempo, um espírito se manifestou com o nome de Orixá Male, responsável por desmanchar trabalhos de baixa magia. Essa entidade, quando em demanda, mostrava-se sábia, capaz de destruir as energias maléficas dos que a procuravam.
Dez anos depois, em 1918, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, recebendo ordens do Astral, fundou sete tendas para a propagação da Umbanda, sendo elas: Tenda Espírita Nossa Senhora da Guia, Tenda Espírita Nossa Senhora da Conceição, Tenda Espírita Santa Bárbara, Tenda Espírita São Pedro, Tenda Espírita Oxalá, Tenda Espírita São Jorge, Tenda Espírita São Jerônimo.
O termo “espírita”, bem como os nomes de santos católicos nas instituições recém-fundadas, foram usados porque naquela época não se podia registrar o nome Umbanda, uma vez que esta era proibida, e seus membros perseguidos pela polícia, que a confundia com macumba. Quanto aos nomes de santos, era uma maneira de estabelecer um ponto de referência para os fiéis da religião católica que procuravam os préstimos da Umbanda.
Enquanto Zélio estava encarnado, foram fundadas mais de 10 mil tendas, a partir das mencionadas.
Mesmo não tendo seguido a carreira militar, para a qual se preparava, pois sua missão mediúnica não permitira, Zélio nunca fez da religião sua profissão. Trabalhava para o sustento da família, tendo contribuído financeiramente diversas vezes para manter abertos os templos que o Caboclo das Sete Encruzilhadas fundou. Isso sem contar as pessoas que se hospedavam em sua casa (que, segundo dizem, parecia um albergue) para os tratamentos espirituais. Zélio nunca aceitava ajuda de ninguém; era ordem de seu guia-chefa, apesar de inúmeras vezes isso lhe fora oferecido.
Mais tarde, junto com sua esposa Maria Isabel de Moraes, médium ativa da Tenda e aparelho do Caboclo Roxo, Zélio fundou a Cabana de Pai Antônio, no distrito de Boca do Mato, município de Cachoeira de Macacu, no Rio de Janeiro. Eles dirigiam os trabalhos, enquanto a saúde de Zélio permitiu, tendo ele falecido aos 84 anos, em 3 de outubro de 1975.
Zélio Fernandino de Moraes dedicou 66 anos de sua vida à Umbanda, tendo retornado ao plano espiritual com a certeza da missão cumprida. Seu trabalho e as diretrizes traçadas pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas continuaram sendo desenvolvidos por suas filhas Zélia e Zilméia, que carregam em seus corações um grande amor pela Umbanda, árvore frondosa que está sempre a das frutos a quem souber e merecer colhê-los.
Mai
Sergio Renan
Abraços